Por uma descolonização no Jornalismo

 

 –  Por Jasmine Mendonça, Lucas de Andrade,

   Thallys Braga, Luiz Eugênio de Castro e Pedro

  Henrique Cabo, alunos do 3º período do curso

 de  Jornalismo da UFRRJ. Edição de Ivana Barreto.

 

 

Foto: RODGER BOSCH / AFP

           “Nkali” é uma palavra da etnia nigeriana lgbo que carrega como significado “ser maior que o outro”. Ela é usada para explicar como as relações de poder influenciam as histórias: como são escritas, quem as conta, quando e quantas são publicadas. Tudo isso depende do poder.  Chimamanda Ngozi Adichie popularizou a palavra em sua palestra “O perigo de uma única história”, no TED Talks. Ao longo de dezenove minutos, a escritora nigeriana discorre sobre como a literatura ocidental ajudou a criar no imaginário social a imagem de uma África subalterna e caracterizada por mazelas.

            Nove anos depois da palestra de Chimamanda, em meio à pandemia do Coronavírus que paralisou o mundo, a grande mídia brasileira mostra como funciona, na prática, a influência do eurocentrismo. Nkali está exemplificada nas histórias que os periódicos nacionais escolheram contar – e não contar – sobre a disseminação da Covid-19 no continente africano.

           É grave quando o conceito de invisibilidade se aplica sobre o terceiro maior continente do mundo, que reúne o maior número de países, 54, e ocupa o segundo lugar no ranking populacional. Não é de hoje que a África recebe um olhar homogêneo e superficial do mundo. Repleta de estereótipos, a visão é muito polarizada: ou se restringe às questões de miséria e desgraça, ou à narrativa fantasiosa de riquezas naturais abundantes construída pela ambição europeia.

 

A herança que se perpetua

           Na historiografia, a Europa ocupou o espaço de referência e serviu  como o modelo de desenvolvimento para o mundo.  Em sua colonização, ela reforçou a sua identidade e negligenciou qualquer resquício de cultura que não fosse a européia. O eurocentrismo foi responsável por desvalorizar identidades locais. Consequentemente, a mídia brasileira limita-se a reproduzir os conteúdos das agências internacionais (europeias e estadunidenses), ainda que haja interesse dos brasileiros no panorama da pandemia na África. Isso fica claro na análise da plataforma “Google Trends”, usada para acompanhar a evolução do número de buscas por uma determinada palavra-chave ao longo de um período. Com relação ao termo “Coronavírus África”, observa-se que, nos últimos 12 meses, o Brasil ficou na terceira posição em comparação aos outros países no que diz respeito a popularidade de busca por esse termo.

          A pandemia do coronavírus nos faz refletir sobre rearranjos necessários ao mundo em que vivemos. E quanto à forma como conhecemos, contamos e propagamos histórias sobre esse mesmo mundo? A engrenagem das economias dos países desenvolvidos funciona a que custo? Ao revisitarmos nosso passado, nos deparamos com tragédias de danos irreparáveis. A colonização continua, mas hoje a exploração desgasta de forma sutil, de maneira quase imperceptível e velada.

         O mundo inteiro discute sobre como sair dessa crise sanitária de proporção global. Contudo, práticas como a solidariedade e a compaixão não podem substituir a responsabilidade das lideranças políticas mundiais. As sociedades têm demandas universais para garantir o exercício de direitos fundamentais, como a implementação de políticas que visem grandes reparações históricas e justiça social.
O eurocentrismo está presente nas músicas que ouvimos, nos filmes e seriados que assistimos e, consequentemente, reflete os nossos interesses à medida que consumimos essas produções. Nessa história, não poderia haver outra consequência a não ser o desequilíbrio. Fomos condicionados a assimilar a retórica de enxergar em outros povos a negatividade e principalmente a inferioridade.

        Esse conjunto de fatores nos leva a pensar sobre por quem optamos ser empáticos. A nossa solidariedade estaria controlada pelos algoritmos? O fluxo de notícias não opera de forma justa, por exemplo. Estaríamos todos nós influenciados pela empatia de uma forma seletiva? De maneira alguma, devemos nos abster do que nos faz humanos. A qualidade da nossa humanidade deve ser o cerne da questão e por ela deve-se guiar o trabalho de toda a imprensa.

 

Panorama da mídia hegemônica

        Um dos principais sites noticiosos do Brasil, O Globo optou por uma abordagem numérica, mas não tão humanizada. Depois de informar o primeiro caso de Covid-19 na África, no dia 14 de fevereiro, o jornal só citou países do continente em balanços de novos casos ao redor do mundo. Textos como “Coronavírus já matou mais de 3 mil pessoas no mundo” ou “Casos de coronavírus já passam de 100 mil no mundo” ofereceram ao leitor um panorama geral da pandemia. O jornal realizou coberturas massivas sobre os países da Europa, sobre a China e até mesmo sobre estados estadunidenses, mas o padrão não se repetiu com as regiões africanas. Na maioria das atualizações, os números foram reciclados de agências internacionais europeias, e não houve menção alguma a fontes locais.

       Enquanto o vírus progredia nos países do continente vizinho, o site brasileiro fechava os olhos. Foi quase um mês de “apagão” no OGlobo.com , sem detalhes sobre qualquer um dos 54 países. A única vez que o jornal deu outra angulação para pandemia na África foi no dia 9 de março, em um texto publicado em parceria com o site G1. A matéria destaca as doações que a Fundação Bill Gates realizou para fundos emergenciais da China e da África. Segundo os portais, o auxílio financeiro seria destinado a medidas técnicas, de proteção e diagnóstico porque não havia casos da doença no continente africano. Mas, naquele 9 de março, o vírus já tinha acometido 99 pessoas. O erro, comum aos veículos hegemônicos do País, demonstra uma atitude mista de ingenuidade com negligência por parte da mídia.

        Em uma análise quantitativa da cobertura do portal de notícias G1 durante fevereiro e março, o que mais se destacou foi seu olhar permeado pela influência eurocêntrica. A esmagadora maioria das matérias com menções à África apresentava apenas uma contagem dos casos por país, sem aprofundamento. Em grande parte, resumos diários, onde a China e o continente europeu recebiam destaque.

        O G1 reproduziu matérias de agências internacionais, que inevitavelmente foram marcadas pelo olhar eurocêntrico. Embora algumas possuíssem fontes como a União Africana,  a grande maioria se restringia a comentários da OMS e apresentava angulações pouco reflexivas.

        Além do pouco aprofundamento – essencial para uma boa compreensão do leitor -, o portal apresenta erros de cobertura. Um exemplo é a matéria ‘’Coronavírus: por que não houve casos confirmados na América Latina?’’, veiculada dia 15 de fevereiro, onde afirma-se que ainda não houve casos no continente africano, quando o primeiro já havia sido confirmado e noticiado pelo próprio G1.

        Algumas matérias especificamente refletem, de forma mais acentuada, a reprodução do olhar colonizador sobre a África. É o caso da matéria reproduzida da Reuters ‘’Escassez de produtos frescos deve afetar Europa em meio a paralisações por coronavírus’’. O texto discorre sobre como o fechamento das fronteiras de exportadores alimentícios africanos deve afetar o abastecimento do continente europeu. Embora conte com o pronunciamento de Okisegere Ojepat, presidente-executivo do Consórcio de Produtos Frescos do Quênia, seu enfoque ainda é muito mais sobre o futuro da Europa, ao invés de uma leitura sobre a economia dos países exportadores ou seus trabalhadores. A escolha da angulação e a construção geral da matéria refletem o interesse de um leitor europeu, não de um brasileiro.

        Entretanto, o portal não cometeu apenas erros na cobertura. O texto ‘’Contra coronavírus, África do Sul põe exército para reforçar isolamento e criminaliza disseminação de informações falsas’’ oferece ao leitor um amplo panorama sobre os contextos econômico e social do país. O veículo acertou ao incluir fotos, vídeos e podcasts no corpo do texto. Para a publicação ‘’35% dos países da África têm mortes por Covid-19; especialistas alertam para possível ‘hecatombe’‘‘’, o portal conversou com o ganhador do Nobel da Paz Denis Mukwege, do Congo.

         Com um olhar diferente da maioria das abordagens da mídia hegemônica, a Uol, apesar de replicar grande parte do conteúdo de agências internacionais, deu prioridade a temas mais humanizados e específicos. De assuntos como a situação caótica em um determinado país africano até a relação existente no avanço do autoritarismo com a pandemia, o portal se destaca por seus recortes únicos sobre a África.

         A partir de um tom mais humano e crítico, talvez tentando aproximar e/ou alarmar o leitor para uma realidade nem tão distante, muitas  publicações utilizaram falas dos próprios moradores locais. A matéria do dia 02 de abril – replicada da AFP (Agence France-Presse) -, por exemplo, expôs a realidade de uma sul-africana vivendo em um ambiente com apenas um cômodo e sem janela. Em outras palavras, o leitor desse texto é levado a questionar como a mulher nele retratada pode compreender o isolamento social. É injusto e hipócrita cobrar que a mesma regra seja aplicada a ela, tal como denuncia a própria manchete ao considerar um isolamento “totalmente ilusório”.

         Em todas as citadas angulações, houve uma evidente preocupação em reafirmar a situação caótica do continente africano, citando casos de outros países  e analisando o contexto peculiar da região, sempre de forma enfática, ainda que breve. Apesar dos recortes e dos assuntos variados, todos os textos evitaram o uso de hiperlinks – essenciais para um entendimento maior de qualquer tema – e imagens impactantes. O portal se mostrou simplista demais, fugindo de recursos multimídia e baseando-se, exclusivamente, em matérias curtas.

        Claro que os textos curtos tiveram como contraponto as muitas publicações ao longo da cobertura no continente. Porém, a quantidade não substitui a qualidade. Apesar de ter apresentado um panorama rico, o aspecto de superficialidade se destacou em muitos momentos da análise. Quem garante a constante visita ao portal de um leitor casual? Talvez, a síntese do máximo de informações possíveis em uma mesma matéria – de preferência, com links externos ou internos – fosse o mais adequado.

         Entre os demais veículos da mídia hegemônica, cabe destacar também o site da Folha de S.Paulo. Ao se propor a apresentar matérias mais focadas em dados científicos e falas de autoridades no assunto, a Folha de São Paulo recorreu principalmente a especialistas e pesquisadores africanos, assim como aos pronunciamentos da OMS e de líderes de Estado do continente como fontes para as notícias veiculadas.

        Outra falha recorrente dos meios de informação, que felizmente não foi reproduzida pela Folha de São Paulo, é a homogeneização deliberada da África e de seus países. Nas matérias analisadas, o veículo constantemente especifica as diferenças entre as atitudes adotadas pelos diversos governos africanos e suas variadas estruturas para lidar com a pandemia, além dos impactos que ela está causando em suas economias.

          A matéria “Pandemia atinge África de maneira desigual e reflete contraste entre países”, por exemplo, traça um paralelo entre África do Sul, Angola e Moçambique. O veículo proporciona ao leitor uma compreensão das diferentes realidades nos três países. O texto comenta os impactos do fechamento de fronteiras da África do Sul na economia de Moçambique. Por outro lado, quantas vezes já não lemos em outros veículos sobre os impactos econômicos que medidas estadunidenses causam nos países de primeiro e terceiro mundo? Nem mesmo tomamos ciência das importantes ligações econômicas que países emergentes e de terceiro mundo, como os africanos, possuem entre si.

         Na coluna “Jornalista angolano escreve sobre custo político e social da Covid-19 no país“, do blog Quadro-Negro, o site da Folha de São Paulo demonstra reconhecer que espaço na mídia é essencial não apenas para a representação, mas também para uma ampla construção do “imaginário do leitor”. Essa matéria traz uma profunda análise do contexto político e econômico em que o país estava antes da Covid-19 e como ele dificulta a implementação de políticas de combate e prevenção à doença em Angola.

         Na mídia digital, o uso de recursos multimídia como hiperlinks, fotografias, vídeos e áudios é essencial. A Folha de São Paulo apresentou um emprego satisfatório desses recursos nas matérias analisadas. Diferente de outros veículos da mídia hegemônica, os links internos encaminharam para outras matérias sobre a Covid-19 na África. As fotos utilizadas também eram pertinentes e auxiliavam na compreensão da situação dos países abordados.

           Entretanto, A Folha de São Paulo também apresentou falhas em sua cobertura. Mesmo com o primeiro caso no continente africano tendo sido registrado dia 14 de fevereiro, a primeira notícia específica sobre a África foi veiculada no site somente dia 1 de março. O destaque para a fala de Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, no título da matéria, também indica que o motivo da veiculação foi a crença de que isso chamaria mais atenção do que as outras falas de especialistas.

          Mais uma vez, vale destacar que quantidade não sobrepõe qualidade no jornalismo. Poucas notícias bem apuradas e aprofundadas têm mais valor  do que centenas de ‘Hard News’ repetindo informações descontextualizadas. Quatro notícias para um continente de 54 países, durante três meses, ainda é uma escolha editorial questionável. Principalmente, se levarmos em conta que o Brasil, de acordo com o Google Trends, possui interesse em saber sobre a situação da pandemia do novo coronavírus na África.

           Ao optar por angulações científicas e econômicas no lugar de matérias quantitativas e focadas nas atualizações dos números, a Folha de São Paulo cobriu a África com respeito e aprofundamento. A escolha da angulação e das fontes fez com que suas notícias, mesmo poucas e tardias, se destacassem em relação à grande mídia.

 

Mídia alternativa?

          Entre os veículos da mídia alternativa brasileira, analisamos três sites noticiosos: Brasil 247, Brasil de Fato e Nexo. Os dois primeiros são dedicados à cobertura nacional. Ou seja, não existe explicitamente um compromisso em destacar notícias internacionais. Porém, ambos os sites o fazem. O último assume a tarefa de oferecer um jornalismo contextualizado sobre o Brasil e o mundo.
A análise sobre o Nexo foi restrita  porque o jornal digital publicou apenas um conteúdo referente à pandemia no continente: no final de março, mais de quarenta dias após o primeiro caso registrado no Egito. Mais uma vez, um veículo de mídia alternativo repetiu o padrão tradicional de privilegiar informações sobre os países europeus e da América do Norte. Contudo, o que o difere das outras abordagens é a construção de um amplo contexto para o leitor. O jornal elaborou um gráfico com o número de casos em cada um dos 54 países e ofereceu informações históricas sobre a população do continente.

         O site Brasil 247 trouxe a editoria “Mundo”. Por sua vez, o site Brasil de Fato trouxe a editoria “Internacional”. Os dois veículos destinaram suas editorias às notícias de como o vírus impacta o exterior. Apesar da mídia alternativa brasileira oferecer um contraponto de abordagem por seus princípios editoriais, o padrão de invisibilidade à África – em termos quantitativos-  imposto pela mídia hegemônica e tradicional, se reproduz.
Quanto ao site Brasil 247, entendemos que falhou em sua cobertura. Não há registros sobre o primeiro caso de coronavírus confirmado no continente africano, no Egito. E, para piorar, a primeira notícia sobre a pandemia na região foi publicada no dia 28 de fevereiro, em um balanço de novos países com casos notificados. O portal ignorou as notificações de alguns países e optou por destacar as falas de líderes internacionais. Durante um longo período, não houve notícia nem menção sequer a casos, óbitos ou informações que retratassem a situação provocada pela pandemia do coronavírus na África. Quando apareceram, os textos não tinham contextualização, recursos multimídia ou links internos e externos.

         O site deixou a desejar em termos quantitativos, sobretudo pela frequência como as notícias foram publicadas. E, até mesmo, se levarmos em conta que, por não possuir equipe no continente africano, ele precisou reproduzir a mídia hegemônica que, por sua vez, acata o que as agências internacionais pré-selecionam. O grande diferencial da cobertura feita pelo site, que o qualifica acima da média, são os artigos de opinião. Porém, nem todos os textos que mencionam a África problematizam e contextualizam a situação particular do continente.

         O texto de Marilza de Melo Fouscher, “O coronavírus retira a máscara da ideologia neoliberal”, publicado no dia 17 de março, critica o fato de que o aspecto econômico se sobressaia às urgências humanitárias. A autora cita o despreparo e a demora de ações dos países mais ricos em conter a propagação do vírus, baseados numa ‘cautela’ em proteger o sistema econômico neoliberal.

        Há uma única menção à África no texto: “Esperamos que o continente africano seja poupado desta catástrofe humana”. Àquela altura, a África já havia notificado casos e implementado medidas de isolamento social. A “catástrofe humana”, como a autora se referiu à pandemia, se somou a tantas outras que afetam a região, seja de ordem sanitária como a AIDS, seja de ordem política como o totalitarismo de alguns regimes no continente.

         O artigo “Coronavírus na África, a terceira onda”, de Lelê Teles, publicado originalmente no site Geledés e replicado pelo site Brasil 247, enriqueceu a cobertura. O autor não apenas abordou informações dos efeitos do coronavírus em solo africano, como também complementou sua análise, ao problematizar a forma como o mundo elege as “faces da pandemia”. O jornalista aprimorou o texto com informações sobre os baixos índices de desenvolvimento humano e destacou a desproporcionalidade da comoção mundial com o avanço dos casos.

         Outro objeto de nossa análise foi o site Brasil de Fato, que se apresenta com um enfoque em “coberturas das lutas sociais, entrevistas e notícias sobre política, economia, direitos humanos e cultura, sob uma visão popular das cidades, do Brasil e do mundo”. No entanto, apenas três matérias reportaram os efeitos da pandemia do coronavírus na África, todas sobre a África do Sul, com citações pontuais a outros países. Embora a cobertura tenha sido quantitativamente falha, é necessário ressaltar o aprofundamento das matérias apresentadas pelo site.

         Um mês e doze dias após a chegada do vírus ao continente, o site publicou a matéria “Coronavírus na África do Sul: movimentos denunciam descaso do governo com mais pobres”. Assinado por Lu Sudré, o texto traz detalhes da denúncia feita por movimentos de operários e favelas da África do Sul sobre o que consideram “ações insuficientes para proteger a classe trabalhadora e os mais pobres durante a pandemia de coronavírus no país”. Desde o título, cumpre as expectativas, trazendo um conteúdo aprofundado. A angulação subverte a ordem que privilegia fontes oficiais, cedendo espaço para as versões das pessoas.

        A denúncia foi realizada por entidades como o Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul. As acusações se estenderam a empresas como a multinacional alemã BMW. A narrativa passou a ser protagonizada pelos que estavam na linha de frente, atingidos pela crise: os trabalhadores. Nem por isso deixou de existir a abordagem dos aspectos econômicos. Porém, eles foram pano de fundo para que os rostos dessa crise sem precedentes fossem evidenciados.

        A repórter do Brasil de Fato abordou os despejos violentos que ocorreram nas periferias do país, onde as moradias não são ideais, mas “assentamentos urbanos”. O site revelou um documento com o repúdio ao sistema capitalista e cobranças por medidas efetivas: “Não se pode praticar o distanciamento físico se você e seus pertences estiverem na beira da estrada ou em um espaço aberto e expostos, sem meios de proteção”.

       Um segundo texto sobre o continente africano tratou da decisão de um tribunal sul-africano que autorizou despejos no município de eThekwini, na África do Sul. Foram quatro no total. A matéria foi contextualizada com trechos do documento de autoria de entidades e movimentos sociais, o mesmo citado na matéria anterior. Além disso, há o pronunciamento do movimento Abahlali baseMjondolo e a posição oficial da prefeitura de eThekwini, que sugeriu estar em conformidade com a decisão judicial.

        Por fim, uma excelente matéria de Waleiska Fernandes abordou as consequências do ‘lockdown’ militarizado na África do Sul. As medidas de restrição implementadas pelo governo reacenderam o debate sobre o uso excessivo da força policial. O uso da força policial, incidindo mais sobre negros e pobres, e  a dificuldade de cumprir o distanciamento, em decorrência do desamparo social do governo, são fatores que compõem o atual cenário do país.

        A repórter criticou o uso da palavra “prevenção” para justificar o endurecimento de medidas em países como a África do Sul. Ressaltou ainda que a “prevenção” adotada pelos governos locais não contempla a implementação de medidas sanitárias tampouco oferta de assistência humanitária, apenas a ordem de isolamento social. Entrevistados denunciaram o abuso de autoridade e a violência policial nas periferias do país.

 

Contraponto ao eurocentrismo

      Apesar das poucas exceções, a mídia brasileira não foge da ideia “Nkali”. O problema é muito maior do que reportar notícias de forma aprofundada  sobre o continente africano. A questão está na própria visão dos jornalistas, na forma como os textos são elaborados. Como desconstruir uma ideia etnocêntrica tão forte e enraizada? Como retratar a história e o passado ricos da África em uma narrativa justa, em um local de poder? É difícil considerar todos esses aspectos quando, cada vez mais, nota-se a invisibilização dos países africanos para a mídia.

        Percebemos que não há uma história única sobre determinado lugar. Ao construir uma narrativa, incorporamos a nossa cultura e os nossos preconceitos. Insistimos em propagar um imaginário excludente: a visão de um grande país chamado “África”, lugar de miséria e desastres, à espera de ajuda. O ato de reconhecer que estamos impregnados, presos, imersos no eurocentrismo já é um grande passo para compreender a necessidade de descolonizar o jornalismo.

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