Paganismo para além do preconceito

A desmistificação de uma das tradições mais antigas do mundo — por Glauco Lessa e Maiara Santos

 

Fonte: fanpage da Vila Pagã.

Intensa. Suave. Forte. Misteriosa. Sombria. Calada. Clamante. Marginalizada. Escondida. Demonizada. Crente. Pagã. Tradição que chama a atenção pelas nuances de uma crença associada à ideia de pecado. Erro que conduz um senso comum entre muitos e é apreciado como belo por tantos outros. Paganismo. Basta um olhar e a magia se desvendará.

A fé pagã é entendida por ser uma tradição religiosa não-cristã. Durante boa parte da Idade Média, para os povos cristãos, não havia tanta relevância sobre qual era a religião de um povo se ele não acreditava em Cristo. A Arábia, regiões mais afastadas da Ásia e a África eram vistas como formadas por povos pagãos. Muçulmanos, judeus, budistas, hinduístas e quaisquer outras tradições que não cultuavam o messias enviado por um Deus como a salvação do mundo eram englobados como “pagãos”.

O significado da palavra nos dias de hoje, no entanto, remete principalmente às tradições europeias antes da cristianização, como a cultura nórdica e celta. Convencionou-se a chamar essas correntes mais recentes de neopagãs, sendo uma das mais famosas a Wicca, cuja origem data do começo do século XX.

Os wiccanos não possuem grandes problemas com a palavra “bruxaria” e “bruxo” — inclusive é assim que se identificam e definem sua religiosidade. Entretanto, essas palavras não são carregadas de forma ruim ou negativa para eles. Pelo contrário, nelas há uma história de identificação e pertencimento tão significativa quanto qualquer encontro de fé. A tradição Wicca é um resgate de práticas espirituais anteriores ao Cristianismo e é chamada por alguns praticantes de “religião natural” ou “a mais antiga do mundo”, embora seja uma das mais demonizadas no senso comum, pelo desconhecimento das pessoas a respeito.

Comumente associamos bruxaria a maldições. Vemos os costumes como ruins, acompanhados ao sentimento de ódio e dedicados à realização do mal na vida de outras pessoas. No entanto, para os praticantes, a bruxaria e a magia são apenas dois significados para concretizar a conexão com o quê somente é sentido na alma; duas formas de acessar os segredos da natureza e criar um vínculo mais forte com ela. Há rituais, termos e práticas que podem assustar algum leigo, mas não são atitudes “malignas” como propagadas ao longo de séculos de convívio religioso em sociedade.

Rafael Nolêto, 28, fundador e sacerdote da Vila Pagã, em José de Freitas, Piauí, teve sua educação baseada na fé cristã desde a infância, mas sempre sentiu a falta de algo que o completasse. Ainda criança, Rafael percebeu a necessidade de uma espiritualidade que o proporcionasse maior proximidade com a magia, a natureza e diferentes faces divinas. Ao ter contato com a literatura na pré-adolescência, o jovem líder religioso conta como a introdução no mundo das pesquisas sobre as tradições folclóricas e ancestrais consolidou a identidade religiosa que tanto ansiava.

“O primeiro passo para me reconhecer como pagão foi a busca pelo autoconhecimento, através de leituras, diálogos com pessoas mais experientes e visitações a espaços de distintas práticas religiosas. Ainda pré-adolescente, no ano de 2001, senti uma pressão por parte de alguns membros da família e colegas de escola. Acredito que essas pessoas tinham medo. Alguns mais curiosos chegavam a perguntar para conhecer melhor minha fé. Com meu amadurecimento espiritual, fui tendo mais convicção da minha identidade religiosa e isso me deixou mais confiante”, afirma.

Membros fundadores da Vila Pagã. (Foto: fanpage da Vila Pagã)

A Vila Pagã é um centro cultural, turístico, religioso e habitacional fundado por Rafael e outros membros do Círculo Piaga — grupo de estudos e práticas da tradição piaga — com o objetivo de consumar uma religião nativa do estado do Piauí denominada por “piaganismo”. O local possui uma área de 70.000 m² com espaços destinados à residências de pagãos, bosques sagrados, monumentos dedicados à divindades pagãs, templo pagão, centro cultural e outros ambientes de fomento à cultura piaga e politeísta. No círculo, longe de ser nocivo, há um trabalho de pesquisa de raízes ancestrais, cultura, mitologia e história. Através disso, cria-se uma conexão com a magia territorial e consolida uma identificação pagã regional.

“Encaro a espiritualidade com a merecida seriedade e dedicação, as pessoas ao redor também passaram a dar mais crédito por isso. Acredito que para obter o respeito não bastam discursos, é necessário levar sua espiritualidade a sério e praticá-la com verdade e amor, mantendo o respeito aos outros. Além de procurar dar o meu melhor por aquilo que acredito, também compartilho um pouco com aqueles que buscam conhecer melhor a espiritualidade pagã e politeísta. De forma regular, estou presente em atividades ecumênicas, palestras, entrevistas à mídia e rodas de bate papo, com o intuito de esclarecer e informar a sociedade em geral sobre a cultura pagã”, defende Rafael.

Saiba mais sobre a Vila Pagã.

 

Um pouco mais de outras bruxarias

Assim como Rafael Nolêto justifica a crença dele pelo paganismo, existe outra vertente pelo Brasil conhecida como Bruxaria Natural. Estrutura-se em uma filosofia de vida que resgata a importância de encontrar na natureza o equilíbrio e uma melhor qualidade de vida. Nessa corrente, há uma atuação significativa que utiliza ervas e cristais para a realização dos ritos. Tânia Gori é fundadora dessa orientação religiosa, organizadora da Convenção de Bruxas de Paranapiacaba e Presidente da Universidade Livre Holística e reforça em sua militância como diferentes manifestações da fé pagã culminam — em sua essência — na positividade com o ambiente que nos cerca.

Convenção de Bruxas e Magos de Paranapiacaba. (Foto: fanpage da Convenção)

O reconhecimento de espaços mais abertos para dialogar sobre o paganismo, segundo Tânia, proporciona abertura para as pessoas se sentirem mais livres ao expressarem aquilo que pensam, sentem e professam. E é assim que acontece nos locais em que a bruxa de Santo André, região do ABC Paulista, frequenta e atua por uma sociedade mais inclusiva e respeitosa.

Tânia Gori. (Foto: Facebook)

“A Universidade Livre Holística, também chamada de Casa de Bruxa, é uma escola de vinte anos de existência, que trabalha com a qualificação profissional nas áreas de terapia holística e autoconhecimento. E a Convenção nasceu e existe como um marco de desmistificação de magia como um todo. Reúne várias crenças e filosofias e cada qual traz uma explicação de seu caminho. Acredito que a Convenção é um evento que mostra como podemos ter a fé que quisermos e, ainda assim, viver em harmonia e respeito um com o outro”, explica Tânia.

Percebe-se que a expressão da fé pagã é bastante vivida na busca de conhecimento sobre aquilo que enxergamos a olhos humanos ou da alma. Todavia, as experiências adquiridas e as vivências com o sobrenatural se mesclam para trazer à tona um sentimento de pertencimento capaz de libertar.

 

A UFRRJ e o Círculo Pagão

A estudante de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRRJ, Barbara Zatara, por não ser ligada a uma tradição pagã específica, passou por um grande processo de reconhecimento para se compreender dentre muitos aprendizados. A jovem de 23 anos, que desde os onze estuda sobre paganismo, se enxerga pagã há cerca de quatro. Barbara considera o contato que teve no Círculo Pagão da Rural o seu envolvimento concreto com a bruxaria, pois, naquele grupo, a futura historiadora sentiu que pertencia a algo.

Barbara Zatara. (Foto: Documentário “As Três Faces da Deusa”)

“Acho que entrar na faculdade foi um momento de reafirmações e mutações constantes, e as práticas de fé sempre estão entrelaçadas nesse processo. Muitos dos meus amigos me chamavam/chamam de bruxa, por conta da leitura de oráculos que faço ou pela minha própria postura perante as questões religiosas. Então comecei a me questionar e uma vez que encontrei o pertencimento, eu acabei por me colocar socialmente como tal. Sentir-se oprimido, pra mim ainda não é uma grande questão. Meu ciclo social está envolto dos amigos da faculdade, que, consequentemente, tem uma mente mais aberta pra esses tipos de questões. Em casa, meus pais sempre souberam do meu interesse por bruxaria e ocultismo e nunca me barraram o conhecimento, mesmo sendo cristãos. Mas infelizmente eu sei que o preconceito é grande e atinge muitos pagãos no mundo inteiro”, desabafa.

O Círculo Pagão, ao qual Barbara hoje pertence, foi formado pela necessidade de alunos e alunas que, de alguma forma, se identificavam com a fé pagã, xamânica ou com a bruxaria. O intuito de realizar encontros dentro do ambiente universitário e efetivar o grupo como uma reunião religiosa dentro do campus era para estimular a troca de experiências e ideias sobre o universo da religião pagã.

Como primeira associação dessa natureza criada em uma universidade federal, o Círculo impulsionou o surgimento de movimentações semelhantes em outros institutos federais. Um dos atuais membros, Mateus Cunha, 23, é um dos grandes responsáveis pelo reconhecimento que o grupo ganhou na UFRRJ e fora dela. Aluno do curso de Jornalismo da Rural, Matt — como também é conhecido — produziu um documentário acadêmico que gerou visibilidade ao mostrar como os jovens estudantes pagãos enxergam e professam o que acreditam. “As Três Faces da Deusa” narra o envolvimento de três pessoas  —  inclusive Barbara  —  com a Deusa Diana e a relação delas com as práticas pagãs.

“Fazer o documentário foi uma lição prática de como sempre na nossa vida devemos fazer apenas o que gostamos e acreditamos. Não adianta. A vida é uma e a gente tem que viver o que a gente gosta. Quando recebemos a missão de fazer o doc, na hora me veio essa ideia. Pelas limitações da universidade e financiamento zero, eu tive que fazer um recorte no tema: decidi não fazer um mega documentário sobre a história do paganismo, mas um filme singelo, onde três amigos que partilham dessa fé — cada um à sua maneira — pudessem contar suas histórias, descobertas e também dificuldades. E a partir dessas falas, os expectadores passariam a aprender um pouco sobre paganismo ou ao menos compreender como tudo pode ser mais simples do que a gente imagina”, conta Mateus, que ainda ressalta os frutos colhidos até o momento com a repercussão do curta.

“O resultado até então, com as exibições na Mystic Fair e Convenção de Bruxas, foi extremamente positivo. Consegui cruzas Rio e São Paulo com o filme, em eventos grandes sobre paganismo, e isso foi muito importante pra mim, enquanto profissional. Em ambos os eventos foi o único material audiovisual, já que o maior volume sempre é palestra ou vivência. Então foi interessante ver também como é importante a contribuição do audiovisual dentro do paganismo. É um caminho ainda a se explorar. Pra fora, pra pessoas que não são pagãs, também tem sido legal a receptividade. O filme faz parte do catálogo da TV Caiçara, um portal de filmes independentes. E através dele muitas pessoas chegaram a mim também”.

Um único desejo que une quatro pessoas a milhares de outras espalhadas pelo país: fazer algo positivo a partir do que professam e cultuam em suas vidas. Segundo um dos grandes princípios da Wicca, a Lei Tríplice baseia-se na ideia de que qualquer ação, seja bondosa, seja maldosa, sempre retorna três vezes mais forte a quem a realizou. Isto é, se a pessoa pratica atitudes positivas em sua vida e para com os seres que a cerca, tudo volta triplamente melhor; do contrário, triplamente pior. Mesmo que nem todas as pessoas pertençam à Wicca e possuam manifestações religiosas diferentes, podemos notar que, se a religião e a fé pagã se fundamentam no respeito ao que é natural e fornecido de bom grado pelos deuses, não deveria haver motivos para personificar o mal para todo e qualquer praticante dos rituais pagãos.

O que todos desejam, no cerne de suas crenças, é viver em um mundo mais harmonioso, livre de medos e desrespeitos. Os gostos são plurais e as preferências idem, por isso devemos aceitar que a fé nunca é única.

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