Mídia e o retrato das domésticas na pandemia

Reprodução Youtube

Por: Fernanda Lizzi, Isabelle de Oliveira, Jasmine Mendonça, Lucas de Andrade, Luiz Eugênio de Castro, Mayara Dias e Pedro Henrique Cabo*

As mãos que redigiram esse texto não são calejadas pelo uso de vassouras, rodos, panos e esfregões. Muito menos as que carregam a exaustão de outros afazeres domésticos. Além disso, queremos ressaltar que não temos a pretensão de estarmos acima do bem e do mal ao tentarmos analisar as abordagens da mídia e retratá-las em uma narrativa. Acreditamos, sim, que o pensamento crítico se constitui justamente na observação e reconhecimento de preconceitos históricos enraizados em nossa cultura. E ele, o exercício da crítica fundamentada, será nossa bússola para o entendimento de um assunto tão delicado quanto urgente: a forma como as mulheres, em sua grande maioria negras, que trabalham como domésticas, estão sendo afetadas pela pandemia. Para tanto, convém fazermos uma digressão histórica.

A escravidão foi uma das experiências mais degradantes que a humanidade já vivenciou. O Brasil tem mais de 350 anos de sua história marcados pela violência e repressão contra cerca de 4,8 milhões de escravos que chegaram ao seu litoral. Juridicamente, 1888 foi o ano da abolição da escravatura no país. Com a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, aparentemente “liberdade” faria parte do vocabulário das pessoas negras. Porém, a realidade foi bem diferente do que contam os livros didáticos. Sem um planejamento político que, de fato, implicasse na emancipação e inserção social do negro, ele permaneceu e ainda permanece marginalizado. Livre das chicotadas, mas preso em seu próprio “destino”. 

O passado nunca foi tão presente

“O que era a casa grande no passado são os apartamentos de luxo hoje. O que eram os escravos domésticos no passado são as empregadas domésticas hoje. A senzala moderna é o quartinho da empregada”, analisa Joyce Fernandes, 32 anos, rapper, historiadora, ex-empregada doméstica e escritora, no TEDx Talks, de 12 de janeiro de 2017, em São Paulo

Também conhecida como Preta Rara, ela publicou o livro “Eu, Empregada Doméstica” (2018) onde, a partir de relatos de outras trabalhadoras, relembra suas próprias dores e vivências desumanas, carregadas de opressão. “É uma grande responsabilidade apresentar ao mundo um livro que tem o poder de transformar e sensibilizar as pessoas, principalmente por ser fruto de um trabalho engajado e comprometido com as lutas contínuas pela liberdade. Tarefa árdua, às vezes dolorosa, mas indispensável”, diz. Por isso, engana-se quem pensa que o presente nada tem a ver com todo o histórico racista de nosso país. Essa triste realidade pode ser escancarada com dados concretos da mídia hegemônica e da alternativa.

Em matéria do dia 2 de abril, o jornal O Globo, a partir de informações do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), expos ao leitor a quantidade de mulheres negras no universo dos trabalhadores domésticos. Do total de 6 milhões, 5,7 milhões são do gênero feminino; 3,9 milhões são pretas; e menos de 30% formalizadas. São números que “gritam” a herança escravocrata e patriarcal do Brasil. Ainda quanto à matéria, houve a preocupação de utilizar personagens reais com o objetivo de humanizá-la, lançando mão de um tom crítico. 

A BBC Brasil também trabalhou dados, mas de uma forma diferente de O Globo. No dia 22 de abril, uma matéria sobre diaristas dispensadas sem pagamento durante a pandemia foi publicada. Infelizmente, a abordagem não fugiu do viés puramente estatístico e “frio”. Apesar da falta de aprofundamento em relação ao aspecto social, expôs informações relevantes do Instituto Locomotiva, coletadas em uma pesquisa realizada entre os dias 14 e 15 de abril. Segundo o estudo, 23% dos empregadores de diaristas e 39% dos patrões de mensalistas afirmaram que suas funcionárias continuavam trabalhando normalmente, mesmo durante o período de quarentena. 

Números precisos e alarmantes, mas que não aprofundam a vivência por trás deles. A escolha editorial da BBC Brasil representa certa manutenção de uma fala elitista, reforçada por Renato Meirelles: “Elas são muitas vezes a ponte da transmissão de vírus para a periferia”. E a vida dessas mulheres? Por que tratá-las como meros vetores? Na fala, fica nítido o olhar científico e pouco humanizado do personagem que o veículo optou por consultar. Ironicamente, o slogan do Locomotiva, que Renato preside, defende justamente uma ideia contrária: “Mais do que entender de números, somos especialistas em entender de gente”.

A luta além dos números

Atravessar esse momento de pandemia é difícil e vivê-lo trabalhando, por falta de opção, é um desafio. Afinal, permanecer em casa e poder escolher sair ou não constitui um privilégio. A crise, que foi iniciada devido à Covid-19, continuou com a desregulação dos direitos dos trabalhadores, que não são respeitados pelos empregadores. A situação de vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas persiste ao longo dos anos, mas com a pandemia vem se agravando.

No dia 2 de abril, a plataforma de jornalismo de dados Gênero e Número divulgou matéria em que apontou diaristas e cuidadoras de idosos como as trabalhadoras domésticas mais vulneráveis nesse instável período. Com base nos estudos do Ipea, o mesmo utilizado por O Globo, elas constituem 44% da categoria. A partir dessa análise, também foi observado que, em 2018, os trabalhadores sem carteira assinada correspondiam a 71,4% da classeEm outra matéria desse veículo, dados comprovaram que o número de trabalhadores domésticos com vínculo empregatício caiu de 33,3%, em 2016, para 28,6%, em 2018.

Nos textos da Gênero e Número, são apresentadas opiniões pessoais dos seus autores, pois não há interferência de interesses empresariais e políticos na plataforma. Consequentemente, esse veículo digital independente inclui comunidades ignoradas pelos grandes canais e constrói conteúdos originais, com histórias reais, vividas por suas fontes, que dão maior credibilidade à matéria. Tal postura reflete quais devem ser os parâmetros do jornalismo humanizado, capaz de revelar pontos e contrapontos de um mesmo tema, tendo como base dados concretos, relatos dos personagens envolvidos.

O Diálogo com o diabo

Cleonice, 63 anos, teve sua vida interrompida pela irresponsabilidade de seus empregadores. A patroa, que viajava pela Itália, retornou ao Brasil sem avisar a funcionária de uma possível doença, segundo relatos de parentes da vítima. A doméstica trabalhava para a família há mais de 10 anos e, semanalmente, percorria 120 km, de Miguel Pereira ao apartamento de luxo no Alto Leblon. Mesmo sendo “quase da família”, não foi alertada sobre os sintomas apresentados pela patroa. Sua morte foi a primeira relacionada à Covid-19 no Rio de Janeiro. 

Segundo matéria do UOL, publicada no dia 19 de março, assim que Cleonice começou a passar mal, sua patroa telefonou para os familiares da própria doméstica, pedindo que fossem buscá-la. Depois de duas angustiantes horas passadas num taxi, chegaram ao hospital em Miguel Pereira, mas infelizmente a empregada não resistiu. Sem ter tido qualquer possibilidade de diálogo com a patroa, foi silenciada para sempre. 

Enquanto isso, veículos hegemônicos insistiram e insistem em divulgar um improvável acordo mútuo com os patrões como solução para as trabalhadoras domésticas. Com orientações legais e falas de autoridades, a matéria do GRTV 1ª Edição, telejornal da Rede Globo no estado de Pernambuco, para citar um exemplo, trouxe um advogado trabalhista para falar sobre as medidas cabíveis. Tal postura midiática é tão contraditória que o mesmo grupo de mídia produziu matéria, em O Globo, no dia 2 de abril, expondo a ineficiência dos “acordos mútuos”: Trabalhadoras domésticas e diaristas falam das dificuldades que enfrentam em meio à pandemia. No texto, a entrevistada conta que tentou marcar suas férias para poder seguir as recomendações de isolamento, mas não houve acordo. Atitude mais coerente e responsável teve o Nexo, em 24 de março, que optou por nem mesmo apresentar a proposta de acordo mútuo como uma medida eficiente, pois, segundo o veículo, ela depende da boa vontade do patrão.

Pela vida de nossas mães

Filhos e filhas de diaristas se uniram para criar uma Carta Manifesto, expondo a dura realidade do trabalho doméstico e reivindicando o afastamento remunerado durante a quarentena, o adiantamento de férias e a segurança daqueles que precisam morar no local de trabalho. O objetivo é, através de um abaixo-assinado, defender a promoção do bem-estar comum e não afetar negativamente a renda dessas trabalhadoras. 

Redigida em março, a Carta Manifesto serviu de base para veículos de ambas as mídias elaborarem reportagens com as histórias ali narradas. No mesmo mês, o jornal Brasil de Fato publicou reportagem sobre a primeira vítima fatal, onde citou o Manifesto e o relacionou à PEC das Domésticas aprovada em 2015. A lei amplia os direitos trabalhistas da categoria, mas segue com pouca adesão por parte dos patrões. Em contrapartida, o portal que ofereceu maior destaque ao conteúdo do texto foi o UOL.

“Somos afetados por essa relação ‘trabalhista’ de retrocesso e modos escravistas”. Estas são palavras de filhos de empregadas expostas na Carta, também conhecida como ‘Manifesto das filhas e dos filhos’, criado com o objetivo de relatar as situações atuais do trabalho doméstico. Nesse Manifesto, é comum encontrar declarações negativas relativas às condições de empregos de diaristas e domésticas. O incômodo em torno dessa parcela trabalhadora só tem aumentado no contexto de pandemia, pois essa prestação de serviço foi considerada essencial em grande parte dos estados do Brasil.

A quem importa manter viva uma empregada? A muitos patrões não é preocupante a exposição enfrentada em meio à uma pandemia, já que consideram prioridade suas casas limpas e organizadas. Ou seja, priorizar uma vida ao flexibilizar as relações de trabalho, cumprindo os direitos garantidos, seguindo o isolamento social, não é uma opção na visão do empregador, mas sim um prejuízo. Além disso, a falta de espaço para uma divulgação completa do Manifesto já sinaliza certa indiferença de grande parte da mídia, uma vez que a superficialidade na cobertura não traz a real dimensão das dificuldades que as domésticas enfrentam em seus serviços. Por isso, sua função não é ser apenas um mural de histórias, mas local de apoio e doações para quem perdeu sua fonte de renda e precisa de um suporte maior.

Final do expediente 

Vai e volta do trabalho de segunda a sexta, enfrenta transporte público cheio e demorado, cozinha, lava, passa e ajuda nos cuidados dos filhos dos patrões. Como estão essas mãos ao fim do dia? Como essa indagação na cabeça, a equipe responsável por esse texto analisou matérias dos sites Nexo, Brasil de Fato, O Globo, UOL, BBC Brasil e Gênero e Número. Ainda que todos tenham abordado o tema, muitas vezes apenas de maneira expositiva, questionamos: qual a contribuição mais efetiva que a mídia pode dar em vez de textos meramente factuais? Apesar da exposição, ora superficial, ora repetitiva, a mídia independente e a hegemônica demonstram que a sociedade brasileira caminhou muito pouco no combate às desigualdades.As mãos seguem calejadas.

Fica o lembrete: a pessoa que trabalha em sua casa não é sua propriedade, sua escrava. Também não é “quase da sua família”. É uma trabalhadora e merece seus direitos como tal. “Força na luta! Ainda chegará um dia que nosso trabalho será reconhecido e, assim, o quartinho da doméstica deixará de ser a senzala moderna”, diz Preta Rara.

*Esse texto faz parte do projeto de extensão Portal Humanidades/Observatório de Mídia da UFRRJ, coordenado pela professora do curso de Jornalismo Ivana Barreto.

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