– por Raissa Amaral e Lucas Meireles
A professora adjunta de Serviço Social da UFRRJ e colaboradora do programa de pós-graduação em Política Social na UFF, Rachel Gouveia, é militante do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e integrante do Núcleo Estadual Antimanicomial, ambos do Rio de janeiro. O seu livro “Trabalho, Gênero e Saúde Mental: contribuições para a profissionalização do cuidado feminino” (Cortez Editora) é fruto de sua tese de doutoramento defendida em 2016, no Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social, na PUC-SP. A obra foi lançada no I Encontro sobre Saúde Mental das Mulheres, que aconteceu dia 30 de abril em João Pessoa-PB. Nessa entrevista exclusiva ao PH, Raquel nos conta sobre do que trata o livro e seu processo de pesquisa.
Por que você escolheu estudar e escrever sobre a saúde mental das mulheres?
Minha tese de mestrado é direcionada nessa questão. Eu venho estudando desde essa época sobre as mulheres como protagonistas da Reforma Psiquiátrica Brasileira e foquei especificamente nas mulheres que cuidam, nas familiares. Então, desde a minha dissertação, eu já pesquisava sobre as mulheres que promovem cuidado às pessoas que têm sofrimento psíquico, sejam elas filhas, mães, esposas, companheiras. A partir desse estudo, entendi que elas ficavam de forma invisibilizada e subalternizada na construção da Reforma Psiquiátrica. Fui pesquisar a experiência aqui no Rio através de entrevista com mulheres. A minha proposta no doutorado era pesquisar como elas compõem o Movimento da Luta Antimanicomial e como elas são protagonistas. Só que, como em toda pesquisa de doutorado, resolvi estudar também sobre o trabalho do cuidado nos serviços residenciais terapêuticos, ou seja, sobre as trabalhadoras que cuidam em um determinado serviço de saúde mental. Ali eu pude observar uma série de relações entre o mito do amor materno, a desigualdade racial – já que quem promove esse cuidado nesses serviços são as mulheres negras, moradoras da periferia – e, além disso, o quanto esse lugar de trabalhadora do cuidado também produz sofrimento. Esse sofrimento acontece por conta na dificuldade de descolar a ideia de ter atribuições consideradas femininas (ser mulher, mãe) a esse trabalho do cuidado direcionado a sujeitos que, por muitos anos, ficaram institucionalizados num hospício. Eu fiz o levantamento do perfil de quase 300 cuidadoras, onde quase 70% delas são negras, pobres, algumas nem terminaram o ensino médio; outras têm ensino fundamental. Existe uma alta rotatividade por conta do vínculo. Esse vínculo é precário, porque não são escolhidas por concurso público, apesar de ser por meio do CLT, o contrato com a prefeitura é instável, já que é uma parceria público-privada.”
Como foi o processo de criação do livro?
Todo processo se deu ao longo do doutorado. Foram 4 anos na PUC de São Paulo e fui para Portugal estudar uma parte da teoria também. Depois que eu defendi, aquele alívio de todo pesquisador, fui trabalhar no processo de organização do livro. A ideia de pensar a tese em livro foi de socializar tudo o que eu identifiquei, principalmente por essas mulheres. Algumas partes eu preferi não colocar, como metodologia e uma parte do campo que estava direcionada à formação na Fiocruz. Direcionei na implicação entre mundo do trabalho, relação de gênero e saúde mental, que é praticamente o título do livro. Tentei também dar maior visibilidade possível para a pesquisa voltada para essas mulheres. Tanto que, em junho, vou lançar uma devolutiva para elas, porque a ideia do livro não é pesquisar sobre elas, mas junto com elas, para elas e com elas.
Como a noção de ‘care’ se desenvolve no atual contexto de precarização feminina?
Eu vou utilizar o termo cuidado em inglês (care) porque já existem teorias internacionais que vão trabalhar sobre o care. O care é um reconhecimento do cuidado como trabalho. Existe um pensamento conservador que entende que o cuidado não é trabalho, e, sim, atribuição feminina. Hoje, o care vem sendo reconhecido mundialmente, (não é à toa que fui pesquisar em Portugal) pela mudança sobre esse trabalho do cuidado, seja na França, na Espanha ou no Japão, que são os casos que eu também trago a partir de outras autoras que vão mostrar que há uma mundialização da prática do care. No caso da Europa do Norte, as imigrantes vão trabalhar como cuidadoras. Na Espanha, as espanholas se recusam a serem cuidadoras, mas aceitam serem trabalhadoras domésticas. Então, quem vai ser cuidadora ou trabalhadora do care são as imigrantes, esse mercado é delas. E, no Japão, nenhum imigrante é cuidador, somente as japonesas, em geral, onde já têm uma formação. No caso da saúde mental brasileira, isso ainda não tinha sido investigado. Aqui, no Brasil, o trabalho com o cuidado é naturalizado. São essas mulheres que protagonizam a Reforma Psquiátrica e que fazem o chamado “trabalho sujo”. A Reforma Psiquiátrica tem uma perspectiva de autonomia, liberdade, tudo isso.”
Que reflexões o livro propõe?
O livro propõe trazer reflexões que abordem sobre as relações de gênero no mundo do trabalho e o trabalho das cuidadoras residenciais terapêuticas que estão vinculadas à política de saúde mental brasileira. Ele traz por base a categoria cuidado e vai abordar o care. O care é o trabalho do cuidado, ou seja, ao abordar o care, se reconhece o cuidado como trabalho na cena contemporânea que hoje vem sendo mercantilizado. Nesse sentido, buscou-se então investigar a realidade dos serviços residenciais terapêuticos e esse trabalho que se encontra subalternizado, executado por mulheres negras, sem formação. Essas reflexões estão fundamentadas na teoria marxista e traz por inédito essa contribuição marxista sobre o mundo do trabalho, focando sobre as mulheres negras e pobres, na realidade do Rio de Janeiro, mais especificamente, no campo da saúde mental. Então traz contribuições para as ciências sociais aplicadas e humanas, para o campo de saúde, e inúmeras contribuições para pensar nesse trabalho que fica invisível, subalterno, e que vem sendo perpetuado ao longo do tempo, compondo a formação social brasileira.
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