A literatura africana feminina no olhar de uma pesquisadora gaúcha

Professora Cíntia Acosta Kütter (DLC) nos conta como se apaixonou sobre o tema e como é ensinar essa temática no curso de Letras da UFRRJ

  — por Lucas Meireles

Nascida em Rio Grande, a somente quatro horas da fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, a professora substituta do DLC, Cíntia Acosta Kütter,  tem um sotaque gaúcho bem marcado. A docente e pesquisadora cursou Letras Português/Francês na Fundação Universidade Rio Grande (FURG), em sua cidade natal.

Recentemente, defendeu o doutoramento em Letras Vernáculas – UFRRJ, com o tema de tese “Bildungsroman feminino: (des)encontros e relações entre memória e escrita”. No recente estudo, a pesquisadora discorre sobre como é possível  o “bildungsroman” (romance de formação, em tradução para o português) comparecer na literatura feminina africana . O romance de formação é um gênero literário que designa de forma promenorizada todo um  desenvolvimento de ordem física, moral estética social ou político de um personagem em uma dada história. Geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade.

“As pessoas acham que a África é um universo mítico, que não existe nada como aqui. Ledo engano nosso”

O interessante da obra de Cíntia é que, para esse contexto,  apenas a pesquisadora Cristina Vera Pinto já havia pesquisado sobre romances de formação femininos. Entretanto, diferentemente da pesquisadora, Cíntia possuía uma tese diferente à respeito do papel feminino neste gênero.

“Mas a teoria dela (Vera Pinto) diz que quando a mulher atingir essa plenitude, esse aprendizado, ou ela vai acabar louca ou vai se suicidar ou vai morrer. Ou seja, a mulher está fadada a nunca atingir a sua plenitude. Só que na minha dissertação e agora na minha tese de doutorado eu vou dizer que a mulher pode sim atingir essa plenitude. Mas para isso ela vai ser considerado uma transgressora, uma à frente do seu tempo”, revela.

Cíntia também é Mestre em  Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, pela UFF (2013) e licenciada em Letras Português/Francês, pela Fundação Universidade do Rio Grande – FURG (2006). Tem experiência como professora de Literaturas de Língua Portuguesa, Língua Portuguesa e Produção textual em diversas instituições de ensino brasileiras, com foco na língua, literatura e cultura brasileiras.  Atualmente também integra o Grupo de Pesquisa “Escritas do corpo feminino” (UFRJ/UNILAB).

Primeiro contato com a Literatura Africana

Foi na Universidade que Cíntia teve o primeiro contato com a Literatura Africana de Língua Portuguesa. O conteúdo era oferecido em apenas uma disciplina optativa ministrada à tarde por um professor que era seu amigo. Pouco a pouco, a então estudante foi conhecendo as obras de autores como Mia Couto e Pepetela.

“Eu fazia a mesma pergunta que meus alunos hoje me fazem:  Existe Literatura na África? Porque as pessoas acham que a África é um universo mítico, que não existe nada como aqui. Ledo engano nosso”, explica entusiasmada  a professora.

Quando o marido de Cíntia veio fazer o doutorado no Rio de Janeiro, a docente descobriu que a UFRJ e a UFF eram referências no estudo da temática no Brasil. No mestrado na UFF começou com o desejo de estudar a questão da negritude. Mas aos poucos foi entrando em contato com outras linhas de pesquisa.

O restante dos mestrandos trabalhavam com Literatura Brasileira, Literatura Inglesa. Na época, Cíntia diz ter sido desafiada por um antigo professor.

“Eu perguntei ao meu professor, Paulo Bezerra, que é um dos maiores tradutores do russo para o português aqui no Brasil, uma pessoa genial, como vou trabalhar isso. E ele disse: ‘ora, pega um dos teus africanos ai e conversa com minha teoria, eu te desafio’. Começou com uma provocação, só que uma provação positiva”, disse.

Diferenças em relação à Literatura Africana

A escrita africana é diferente da brasileira e das europeias. Na visão de Cíntia: “a Literatura Africana tem uma peculiaridade muito grande porque é um reflexo da oralidade. As histórias têm características de uma conversa”.

A professora se arrepia, por exemplo, ao descrever o ritual de contação dos griôs (como são chamados os africanos mais velhos, responsáveis por transmitir os conhecimentos aos mais novos).

OUÇA AQUI A CONTAÇÃO DOS GRIÔS

“Até a contação em si é feita em um ritual. Há uma fogueira e ai todos são postos em círculos. Primeiros os mais novos, os jovens e depois os mais velhos. E quem conduz essa contação são os griôs. E sempre começa com um ‘karingana wa karingana’, que é o nosso ‘era uma vez’ e uma salva de palmas. E ao final também se encerra com ‘karinga ua karingana’, que é também um sinal de fechamento. Como se todos os ancestrais de outro plano, que estavam ali possam ser avisados que agora se encerrou o ritual e eles podem voltar para Orum”, descreve Cíntia.

Dos contos dos griôs a professora admite conhecer poucos. Apenas os compilados nas obras de Lourenço do Rosário e Nelson Saúte. Porém, Cíntia, que ministrou uma oficina de contação de histórias recentemente, sonha em um dia vivenciar, se lhe for permitido, um ritual em Moçambique. Afinal, “sempre há o cunho do sagrado implícito nessa contação”.

Preconceito com a Literatura Africana na escola

Cíntia Acosta conta que trabalhou como professora em escola de ensino fundamental e quis trabalhar com livro intitulado “As Mãos dos Pretos”, de Nelson Saúte. O conto do escritor moçambicano é a indagação de uma criança sobre o porquê das mãos dos negros serem brancos. Mas foi impedida de trabalhar com o livro em sala.

“Nessa sala de aula, onde 95% dos alunos eram negros. Então o preconceito estava dentro de uma escola que é o lugar por excelência da gente desfazer tudo isso e é o lugar onde estava sendo plantado”, revelou.

Desde então, a professora vê uma evolução no estudo da Literatura Africana no Brasil. A Lei 10639/2013 tornou obrigatório o ensino da Cultura Afro-Brasileiro no ensino fundamental, médio e superior, principalmente nos cursos de Letras.

“Então o preconceito estava dentro de uma escola, que é o lugar por excelência da gente desfazer tudo isso e é o lugar onde estava sendo plantado.”

Na USP, revela a docente, há seis períodos para o estudo de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Um para cada país, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Além de um destinado a introdução teórica. Na UFRJ e na UFF há dois períodos, enquanto na UFRRJ há apenas um.

“Aqui na Rural nós temos uma disciplina chamada Introdução as Literaturas de Língua Portuguesa. Eu tenho uma implicância com esse Introdução. Porque nós precisaríamos de, no mínimo, quatro períodos para trabalhar as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”, explicou.

Pesquisa

O último artigo publicado por Cíntia Acosta, “Bildungsroman feminino: uma leitura de Balada de Amor ao Vento, de Paullina Chiziane“, fruto das pesquisas da tese, é uma grande mistura acadêmica. A pesquisadora mistura um conceito alemão com o estudo do russo Mikhail Bakhtin e um romance de uma escritora moçambicana.

“Eu sou dada a essas loucuras acadêmicas”, afirmou com uma verve de humor.

As linhas de pesquisa relacionadas aos estudos africanos costumam ser formados predominantemente por pesquisadores negros. Mesmo sendo branca, a professora Cíntia acredita que sua cor não influencia na pesquisa.

“Eu vejo que em alguns lugares, quando eu sou a única mulher branca falando de negritude, falando de questões ligadas à literatura africana de língua portuguesa, eu sou olhada diferente. Não sinto rejeição, mas sinto um olhar diferente”, explicou.

A pesquisadora contou uma experiência que viveu na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Na instituição há muitos estudantes de países como Cabo Verde e Guiné Bissau. Sociedades, que segundo Cíntia, ainda muito marcadas pela cultura patriarcal e pela resistência à presença das mulheres que não sejam mães.

“Não sinto rejeição, mas sinto um olhar diferente”

“Na minha primeira fala, eu notei que muitos alunos, meninos negros que estavam de braços cruzados. E a partir do momento que agradeci a presença deles ali, eu mencionei propositalmente que eu também estava ali muito agradecida, deixando meus filhos em casa, no Rio de Janeiro. Automaticamente todos descruzaram os braços. Que era um símbolo nítido de resistência a minha presença e eles começaram a me escutar. Ali eu ultrapassei a barreira de professora, mulher, para uma professora mulher e mãe. Superando essa imposição da sociedade guineense”, revelou.

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